sábado, dezembro 24, 2005

ALMANAQUE DE MAURO SANTAYANA

JORNAL DO BRASIL - 24 de dezembro de 2005

Em um de seus textos sobre Cristo, tema que sempre o inquietou (Die Grossen Philosophen , Munique, 1957), Karl Jaspers afirma ser fácil dizer o que Jesus não foi. Ele não foi filósofo que refletisse sistematicamente e sistematicamente ordenasse as suas idéias. Não foi reformador social que fizesse planos; não foi líder político que pretendesse destruir um Estado e fundar outro; Ele não criou nova seita, nem novo culto: os primeiros cristãos o viam como fiel aos antigos ritos judaicos. Pessoalmente, não batizou ninguém. Quem foi então Cristo? Jaspers o vê, entre outras circunstâncias, como homem à margem, o outsider que a necessidade incorporará no lugar mais alto da História. Ele estava no exterior do mundo judaico-helênico, que constituía a base do pensamento do entorno do Mediterrâneo em seu tempo.
Porque permanece, até o fim, à margem, e em situação excepcional, Jesus revela a possibilidade e a esperança implícitas em todos aqueles que são desprezados, de acordo com os padrões do mundo: os humildes, os doentes, os deformados. Em todos aqueles banidos da ordem social, Jesus mostra a potencialidade do homem em si mesmo, sob quaisquer condições. Segundo Jaspers, suas palavras e ações parecem contraditórias. Por um lado, a luta, a dura resistência e impiedosas alternativas; pelo outro, infinita doçura, não resistência, compaixão com os visionários. Ele foi guerreiro desafiador e silencioso sofredor.
É também fácil recorrer à História para mostrar que coube a Paulo aglutinar os cristãos, pregar a nova fé, organizar a Igreja sobre a memória de Jesus, e com a ajuda de discípulos sobreviventes, sobretudo de Pedro. Cristo, no entanto, é muito mais importante nestes dois milênios do que a Igreja e de que todas as teologias. Ele disse que viera para salvar o Homem, e o que resta de humano em nós se deve à sua presença na História.
O jovem Marx, que, no final dos estudos secundários em Trier, era cristão fervoroso (embora judeu, fora batizado protestante), em texto escolar sobre a graça, começa com a pergunta: por que o homem deve aproximar-se de Cristo e, assim, de Deus? A resposta já indica o filósofo que virá: porque é necessário. O Cristianismo, não obstante todos os seus erros – e até mesmo os crimes, que, contra a mensagem de Cristo, s e cometeram em seu nome –, correspondeu à poderosa necessidade de que o homem contasse com a esperança e a promessa, a fim de suportar o peso terrível de sua própria história. Correta é a observação de Joyce, em enigmática e esguia passagem de Ulysses: a História é um pesadelo, do qual tentamos em vão despertar. E só podemos acordar ouvindo o Sermão da Montanha.
O homem, conforme a descoberta de Hume, não é uma unidade, mas, sim, a pluralidade de suas experiências e impressões. Assim, é resultado de penoso conflito entre o egoísmo e a solidariedade. Na maioria das vezes prevalece, em sua individualidade, o predador atemorizado do princípio. Avisos como os de Cristo – e, antes, dos humanistas gregos – deveriam levá-lo a compreender que, fazendo parte de um todo, deve integrar-se no todo, mediante a solidariedade essencial da vida.
No extenso estudo que empreendeu sobre a legitimidade dos tempos modernos (Die Legitimität der Neuzeit – Frankfurt, 1966), Hans Blumenberg dedica sua atenção final ao mito da Encarnação, como espécie de metamorfose.
Ele lhe dá duas explicações, que não se excluem. A primeira é a de que o homem não aceita, com sua inteligência superior, pertencer apenas ao mundo natural. Mediante a Encarnação, ou seja, a dupla natureza de Cristo, homem e Deus, Deus passa a fazer parte de nosso mundo, e nós passamos a fazer parte do seu , em presunçosa igualdade. A outra é a de que, com essa união ao divino, estabelecemos contrato com o Absoluto, pelo qual unimos o nosso destino (ou a esperança desse destino) ao de Deus.
Todas essas especulações filosóficas cedem diante de uma coisa muito mais forte: a Fé. Ela não se explica, mas é a ela que devemos a nossa consciência de ser parte do Mistério e o nosso amor ao próximo, que – na surpreendente visão do adolescente Karl Marx – é manifestação necessária da graça de Deus.

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