Conheci o cineasta Oceano Vieira de Melo há alguns anos, em uma de suas visitas a Campos. Lembro-me como se fosse hoje. Foi numa tarde de sexta-feira na Escola Jesus Cristo, na Lapa. Minha missão era entrevistá-lo para uma das edições do centenário Monitor Campista. Numa sala modesta, com clima de passado, paredes claras, salpicadas de velhos retratos emoldurados, o proprietário da Versátil Home Vídeo falou com orgulho sobre sua relação com Chico Xavier. Acomodado em um sofá antigo, deu detalhes sobre o trabalho que acabara de lançar: mais um de seus preciosos registros sobre Chico, o que me rendeu uma página inteira de matéria no Caderno 2.
E foi colhendo depoimentos para mais um documentário sobre o médium mais famoso do Brasil, que Oceano voltou suas atenções para outra grande personalidade do Espiritismo: o filósofo italiano Pietro Ubaldi. “Tinha descoberto o filme de um pesquisador chamado César Burnier, e esse filme tinha o Chico recebendo o Pietro Ubaldi em Pedro Leopoldo. Aí quis saber quem era esse Pietro Ubaldi, ou seja, eu já tinha ouvido falar nele, mas não tinha muita informação. Quando li a sinopse sobre a vida dele, achei extraordinária e falei: isso aqui dá um documentário maravilhoso. Um homem milionário, que abandonou tudo pra viver uma vida franciscana e que de repente descobre uma mediunidade rara. Sua história é fascinante”, relembra, desta vez no hall do hotel onde ficou hospedado, no Centro de Campos.
Assim como os intelectuais espíritas que, percebendo a magnitude da obra de Ubaldi, o convidaram pra vir para o Brasil, isso em 1952, Oceano tratou logo de eternizar sua história em um documentário de longa-metragem. A obra, que chamou de “A Grande Síntese de Pietro Ubaldi”, foi lançada em Campos no último dia 12 de março. A exibição para os campistas tem um motivo especial, aliás, dois: Campos foi a primeira parada do pensador italiano quando veio para o Brasil. Foi o lugar onde descansou depois de uma exaustiva viagem de navio. “Campos é uma cidade que tem a cultura espírita muito enraizada. Sou pesquisador e tenho publicações, em francês, do final do século XIX, que já registram grupos espíritas aqui na cidade”, observa Oceano.
O outro motivo foi sua amizade com professor Clóvis Tavares, fundador da Escola Jesus Cristo, que tomou conhecimento de suas teorias através das publicações na Revista Reformador, do Rio de Janeiro. “O Clóvis Tavares aprendeu italiano para se corresponder com ele, por cartas”, ressalta o cineasta alagoano, que, além dos documentários espíritas, lançados pela Versátil Vídeo Spirite, se dedica normalmente a filmes de arte, biográficos, culturais e humanistas.
Ao sentir que tinha em mãos ingredientes para mais uma de suas proezas de transformar biografias em arte, tratou de garimpar informações, colher depoimentos de amigos e familiares, inclusive parentes do amigo Clóvis Tavares (a viúva, Hilda, e o filho, Flávio), que moram em Campos. A equipe viajou para a Itália para capturar imagens e declarações importantes e, em setembro de 2009 o trabalho estava concluído. O resultado pôde ser apreciado na 33a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A Grande Síntese de Pietro Ubaldi, com narração de Paulo Goulart, foi exibido durante 12 dias junto com 432 filmes do mundo inteiro, ganhando grande visibilidade.
A obra reveladora do pensador universalista cristão, composta por 24 livros, também seduziu o roteirista Jorge Damas Martins, outro que esteve em Campos para o lançamento. Sentar para conversar com Damas sobre Pietro Ubaldi é se preparar para uma verdadeira aula de história. Aliás, difícil não se empolgar com a biografia e com uma obra que reúne temas instigantes como reencarnação, evolução espiritual, vida depois da morte e mediunidade. O que dizer de uma obra que mereceu elogios de intelectuais da envergadura de Albert Einstein?
No hall do hotel, o roteirista tentou resumir a extensa biografia de Ubaldi, desde seu nascimento, em 18 de Agosto de 1886, na cidade de Foligno - a 18km de Assis, cidade natal de S. Francisco de Assis - até sua morte, em fevereiro de 1972, passando por sua viagem ao Brasil, quando foi morar em São Vicente (marco da civilização brasileira) e as principais características de sua extensa obra. “O professor Pietro Ubaldi escreveu 24 livros, sendo 10 na Itália e 14 no Brasil. Ele é um filósofo espiritualista. Escrevia obras de conceitos os mais variados, onde abordava química, física, política, sociologia, espiritualidade, religiosidade, reencarnação. Então, é uma obra muito ampla. Mas que tem conceito, um eixo central, que é a evolução. Ele mostra na sua obra que tudo está em evolução. Ele amplia, basicamente, o conceito de Darwin”, esclarece.
BERÇO DE OURO - Damas falou sobre sua origem nobre e sobre sua renúncia para tentar unir ciência e espírito. “Ele nasceu na Itália, num berço muito rico. Nasceu e foi criado num palácio. Sua mãe era condessa. Só para você ter uma idéia, o palácio tinha 86 quartos. Mas ele sempre se incomodava com isso. Desde pequeno tinha visões espirituais, pensava muito em Cristo, no Evangelho. Mas ele não conseguia na família ter esclarecimento sobre isso. Ele falava com os empregados, mas eles só tinham uma visão mística, de fantasmas, não tinham esclarecimentos científicos. Então, ele teve que ficar quieto, ruminar essas coisas dentro dele e criar um espaço interior para transformar em laboratório. Transformou sua mente em laboratório”, relata.
Depois do casamento, em 1912, Pietro Ubaldi viu-se obrigado a administrar 12 fazendas. “Imagine: ele pensando na espiritualidade, e tendo que administrar fazendas. O sofrimento foi muito grande. Ele não conseguia se realizar com aquilo. Então resolveu doar o que lhe pertencia à família e viver de seu salário. Queria saber se o Evangelho dava certo”, diz o roteirista, lembrando que, com a decisão, ele fez concurso público para professor de inglês, preenchendo a única vaga disponível. “Ele dividia seu salário de professor em três partes: uma para pagar o quarto dele e viver com dignidade, outra pra caridade, e a outra pra fazer a divulgação das ideias que ele já estava escrevendo. E assim ele passou a vida. E assim ele passou 20 anos e escreveu o seu livro mais famoso, A Grande Síntese”.
A obra já nasceu fadada ao sucesso. Revistas do mundo inteiro reproduziram seus textos, que começaram a ser escritos em 1931. No Brasil, em 39, eles podiam ser lidos na Revista Reformador e no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Na época, Chico Xavier, que começou a sua produção em 31, foi chamado para prefaciar a obra sem ao menos conhecer o autor, que se tornara conhecido no mundo inteiro. “O grande cientista Ernesto Bozzano, maior nome da literatura psíquica do mundo, dizia que trata-se da maior obra de cunho científico que uma mente já captou em termos espirituais”, ressalta Jorge Damas.
Quando, em 1952 ele veio para o Brasil, já estava aposentado. Veio com a filha, duas netas e a esposa. Bajulado por políticos da época, por seu grande prestígio, todos o queriam em seus palanques. Dizer não a essa situação custou caro para Ubaldi, que logo depois recebeu uma ordem de despejo, tendo que cuidar da mulher doente e sustentar também a filha e as duas netas. Mas, quando a situação estava ficando insuportável, recebeu um presente de um admirador, que preferiu manter o anonimato: um cheque no valor de 900 mil. “Em frente à rua em que ele morava tinha um apartamento à venda. Tinha um terraço e um quartinho à parte e para ir a esse quartinho, que era o local onde ele iria escrever, era preciso subir uma escada em espiral, que dava a ideia de evolução. Neste apartamento, que ficava num prédio chamado Nova Era, ele ficou sossegado, até 1971, quando terminou sua obra”, diz.
Os livros que compõem A Grande Síntese começaram a ser escritos no Natal de 31 e tiveram seu ponto final no Natal de 71, sob o título de Cristo. “Logo depois ele se prepara pra morrer. Dia 29 de fevereiro de 72 ele vem a falecer. Como a vida dele era um laboratório, ele queria fazer da morte um laboratório, fazendo dela a mais produtiva possível. Ele teve uma doença no sistema respiratório e precisou ser internado. No hospital, recebia a visita de uma psicóloga que o entrevistava. Depois do banho, que é quando ele se sentia revigorado, ela gravava seu depoimento. Nascia então um livreto chamado Visão do Além”, conta o roteirista, ressaltando que uma das grandes conclusões de seu trabalho é a de que para tudo existe uma lei que comanda. “Está tudo divinamente controlado”.
Ubaldi dizia que era o Brasil o país escolhido para a terceira grande revolução da humanidade. A primeira teria sido a da França, por ideais de democracia, A segunda, a Revolução Bolcheviques, com ênfase na justiça social, mas ambas foram feitas com guerra. A terceira, diz a profecia do pensador, será a Revolução da Ética e terá seu epicentro no Brasil, com seu povo jovem, bem disposto, fraterno e criativo. Pietro Ubaldi tinha tanta ligação com o Brasil, que, quando concluiu a faculdade, sua tese, de 266 páginas, foi sobre a imigração italiana no país, sem nunca ter pisado terras brasileiras. Estranho? Não para ele, que definia muito bem esse tipo de coincidência: “o acaso é o pseudônimo de Deus quando Ele não quer assinar”.